quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Vozes da Favela

Por Adriana Facina para o Fazendo Media:

Outro dia eu estava no morro de São Carlos fazendo umas entrevistas com MCs e, enquanto caminhávamos pelas ruas e vielas, iniciei uma conversa com uma senhora que nos acompanhava. Ela é mãe de um casal de MCs muito populares no lugar e, nas suas palavras, é “cria do São Carlos com muito orgulho”. Cria é uma gíria muito usada nas favelas para designar aquelas pessoas nascidas e criadas nas comunidades e, geralmente, é um termo que vem carregado de um sentido de identidade positiva. Os crias são pessoas que se orgulham da sua origem e, quando ganham projeção como artistas ou outra atividade valorizada, se tornam também motivo de orgulho de toda a favela. Sempre que visito as favelas, alguém se encarrega de me dizer quais são os crias mais importantes daquela região, em geral jogadores de futebol, músicos, compositores etc. Esses crias são, assim, uma espécie de cartão de visitas das favelas, uma prova concreta para quem vem de fora de que ali não há somente miséria, violência ou carências.

Mãe de dez filhos, a senhora me falava de como o morro era um lugar bom de se morar, já que todo mundo se conhecia e fazia comparações com a vida das pessoas que moram em prédios de apartamentos no asfalto, nos quais os vizinhos mal se falam e não sabem nem os nomes uns dos outros. Eu ia ouvindo e concordando, mas caí na besteira de falar uma frase do tipo “só é ruim a violência policial, né?”. Acostumada com a estigmatização que atinge a população favelada, imediatamente a cria do São Carlos reagiu: “não, aqui não tem violência não, é mais calmo do que lá embaixo. O pessoal daqui é trabalhador em sua maioria.” Ela entendeu que eu tava dizendo que a favela é um lugar violento, associado ao tráfico. Eu, aflita, tentei me explicar, dizendo que a polícia é que era violenta e mais ainda nas favelas. Ela compreendeu, mas, durante todo o tempo em que permaneci no morro, sempre fazia uma ou outra menção sobre as vantagens de se morar ali e sobre a tranqüilidade da comunidade. “Aqui você pode dormir de janela aberta e ninguém fecha as portas. Ninguém rouba nada de ninguém.”

Esse tipo de situação, de modo mais sutil, sempre se repete nas minhas visitas a essas áreas da cidade. Ao mesmo tempo, é visível a satisfação das pessoas ao perceberem que quem vem do asfalto está “tranqüilona” no morro, o que quer dizer que se está ali sem medo, mesmo quando se cruza com varejistas armados. É sempre um dos “testes”: passou o “bonde”, todos se preocupam com sua reação, se você vai ficar com medo, se vai querer ir embora, o que vai achar da comunidade. Vendo isso de perto, percebo o quanto são ofensivas as matérias dos jornais que todos os dias reforçam a equação favela = lugar de bandido, logo corpo no chão na favela = traficante. Além de justificarem a política cotidiana de extermínio de pobres, elas têm uma dimensão mais profunda e subjetiva, que atinge a auto-estima das pessoas, suas identidades, sua maneira de se entender no mundo. Daí a necessidade de reafirmar o tempo inteiro para quem vem de fora as coisas boas da favela e, sobretudo, a integridade de seus habitantes. “O morrão é tranqüilão.” “Quem vem na Rocinha logo se apaixona pela comunidade e quer sempre voltar.” “O Borel é celeiro de artistas.” “O morro é isso aqui que você tá vendo, essa tranqüilidade, criança soltando pipa, o que estraga é o que vem de fora, a polícia, é só deixarem a gente em paz que fica tudo bem.” E por aí vai.

A contraface disso são as afirmações do asfalto que ouço quando falo do meu trabalho, do tipo “poxa, como você é corajosa!” ou então “você é maluca!”. Parece que o estrago está feito: transformadas em gueto, as favelas ficam mais sujeitas aos planos colômbias que impõem repressão brutal e caos aos de baixo, sob o pretexto do combate à criminalidade (ou tráfico, ou mesmo terrorismo, dependendo do contexto). No imaginário social, o traficante que ameaça a boa sociedade é um jovem preto, magro, favelado, portando um fuzil. E isso é muito grave, pois muita gente de tradição progressista se exime de criticar de forma mais consistente a política de insegurança pública em curso porque, afinal de contas, “alguma coisa tem de ser feita”. E, se essa “alguma coisa” inclui deixar corpos estendidos no chão das favelas, existe sempre a justificativa dos excessos, do despreparo da polícia ou qualquer outro termo que apresente como acidental aquilo que é pensado para ser exatamente o que é. E é nesse vácuo que crescem Crivellas com seus cimentos sociais manchados com o sangue dos garotos da Providência, na sinistra aliança entre o tráfico e a seita com quem os patrões estão “fechados”.

Numa das conversas com MCs, dessa vez na Rocinha, surgiu uma imagem sobre essa separação entre asfalto e favela. Alguém falava sobre as dificuldades de quem mora no alto do morro, subir com compras, essa coisa toda. Num tom jocoso, outra pessoa disse: “poxa, pelo menos vai ser bom quando o nível do mar subir e inundar tudo. Só vai ficar favela no Rio de Janeiro.” Aí eu lembrei daquele filme, O dia depois de amanhã, no qual mudanças climáticas radicais fazem com que os americanos fujam em massa para o México, invertendo o sentido do fluxo migratório que hoje é alvo de uma política altamente repressiva do governo dos EUA. No filme, os mexicanos, ao contrário dos seus irmãos do Norte, recebem de braços abertos os imigrantes. Todos rimos muito, mas, num tom sério, meu amigo MC Junior falou: “pois aqui o pessoal do asfalto seria muito bem recebido também, você pode ter certeza disso.” Eu não duvidei.

Um comentário:

Favela Comunicação disse...

CUFA Natal Bombando!!!
Parabéns guerreiro@s!


Fernanda Quevedo