segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

DEU NO CORREIO BRAZILIENSE

ONG realizará no próximo ano levantamento sobre quantos homossexuais vivem nas periferias

São Paulo — A Central Única das Favelas (Cufa) vai realizar a primeira pesquisa quantitativa e qualitativa sobre os gays que vivem na periferia dos principais municípios brasileiros. Com representantes em todas as capitais, a organização não-governamental (ONG) pretende conferir quantos homossexuais moram no subúrbio das grandes cidades e que tipo de preconceito eles sofrem. A previsão é que a contagem comece em 2009, mas desde já a entidade está selecionando sociólogos e outros profissionais para elaborar os questionários.

Segundo o presidente nacional da entidade, Danillo Bitencourt, a idéia de fazer o censo surgiu a partir da experiência nas favelas. A Cufa mantém núcleos gays em quase todas as sedes estaduais. No Rio de Janeiro, por exemplo, membros da organização perceberam que integrantes do movimento hip-hop estavam hostilizando homossexuais. Em São Paulo, um grupo de universitários do curso de Sociologia da Universidade de Campinas (Unicamp) realizou um trabalho em Vila Olinda, periferia da capital, e constatou que os gays suburbanos são constantemente vítimas de preconceito de vizinhos. “Muita vezes, os gays que moram nas favelas são obrigados a se mudar para escapar da violência”, diz Miriam Baptista Senna, estudante que participou da pesquisa.

O vendedor Cássio de Oliveira, 27 anos, mora, estuda e trabalha na Estrutural, a maior favela do Distrito Federal. Filho de cearenses, ele nasceu no interior de Goiás e conta que enfrenta preconceito desde que assumiu em casa que é gay. “Meus pais são muito humildes. Quando disse à minha mãe que gostava de homens, ela me mandou sair de casa”, conta. Ele foi acolhido por uma vizinha e hoje tem uma casa própria, comprada com o dinheiro que juntou vendendo produtos de beleza para salões em Samambaia.

“Minha mãe só me aceitou depois que assistiu a uma novela que mostrava a vida de um gay favelado”, conta Cássio, que chegou a pensar que, depois de enfrentar a família e alcançar a independência financeira, sua vida melhoraria. Triste engano. Na rua onde mora, na Estrutural, ele já sofreu tudo que é tipo de xingamento. Há um mês, um vizinho, bêbado, bateu à sua porta de madrugada. “Ele simplesmente me mandou desocupar o barraco porque na rua não havia clima para gays”, relata. Cássio disse que não ia sair e o vizinho o ameaçou. “Continuei morando aqui porque a esposa dele veio me tranqüilizar”, ressalta.

O coordenador do Cufa no Distrito Federal, Max Maciel, diz que a entidade já está se mobilizando para o censo gay. Segundo diz, haverá contagem em todas as cidades satélites, e o objetivo principal é minimizar o preconceito nas áreas periféricas. “Estamos recrutando especialistas em gênero para assessorar a pesquisa, inédita no país. Além de saber quantos homossexuais vivem nas favelas, queremos saber como eles estão organizados e que tipo de preconceito e violência sofrem. A idéia é aparar essa parcela excluída da população”, diz.

Drag queen

O balconista Daniel Balbino, 26 anos, morador no Setor de Expansão O, em Ceilândia Norte, conta que é gay desde criança. Ele também teve problemas em casa, porque o irmão mais velho não o aceitava. “Ele dizia que ia me matar e me xingava. Minha mãe só faltava enlouquecer. Por isso, eu saí”, relata. Uma vez, ao andar na rua vestido de drag queen, chegou a ser apedrejado. “Na favela, vivo dois extremos. Como nasci aqui, conheço todo mundo, e os vizinhos mais antigos me tratam bem. Por outro lado, como os moradores não têm muita instrução, eles não aceitam a minha condição.”

Quando resolve se vestir de mulher, Daniel assume a identidade de Dani Pink. Extravagante, nas roupas e na maquiagem, costuma chamar a atenção. “Adoro sai à noite ‘montada’ (travestido)”, conta. Hoje, porém, para evitar a violência, ele prefere sair de casa vestido de homem. “Levo a roupa e a maquiagem toda na mochila e me monto no banheiro. Tenho medo de entrar vestido de mulher no ônibus”, revela.

Os primeiros questionários da Cufa serão aplicados em São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia e Distrito Federal. Mas já mobiliza gente de todos os estados. O pedagogo Cleyton Camarão, 29 anos, gay assumido e morador da Cidade Nova 8, periferia de Manaus, é um dos candidatos a trabalhar como pesquisador na capital do Amazonas. “Nos lugares mais distantes, a gente é chamado de demônio. Principalmente nas comunidades onde é forte a presença de evangélicos”, diz.

O número

17mil casais formados por pessoas do mesmo sexo moram juntos no Brasil, segundo o IBGE.

Faltam dados mais precisos.

Na contagem da população que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) realizou no ano passado, havia no questionário a pergunta: “Qual é a sua relação com a pessoa responsável pelo domicílio?”. Apesar de a questão ser considerada equivocada pelos defensores dos direitos dos homossexuais, o IBGE descobriu que o Brasil tem 17 mil casais formados por pessoas do mesmo sexo que vivem juntas. Segundo a pesquisa, 0,02% dos homens formam par com outro homem, enquanto, entre as mulheres, essa taxa ficou em 0,01%.

A pesquisa do IBGE foi feita somente em municípios com até 170 mil habitantes, o que mostra que o número de casais deve ser maior. Segundo o coordenador do Grupo Gay de São Paulo, Luís Carlos Sotero, os pesquisadores do IBGE deveriam perguntar quantos gays moram no domicílio, o que revelaria um dado bem mais fiel à realidade. “Nós estamos reformulando o questionário para obter informações de maior qualidade no Censo 2010”, diz o coordenador técnico do levantamento do IBGE, Marco Antônio Alexandre.

“Precisamos saber quantos gays há no Brasil para que o governo desenvolva políticas públicas para essa comunidade”, ressalta Sotero, que elogia a iniciativa da Central Única das Favelas (Cufa). A pesquisa da entidade fará perguntas mais diretas, como se há gays na família e quantos eles são. (UC)

Entrevista - Danillo Bitencourt
“Hora de olharmos para a diversidade”

O presidente nacional da Central Única das Favelas (Cufa), Danillo Bitencourt, acredita que, ao aferir os gays da periferia das grandes cidades, ajudará na elaboração de políticas públicas para reduzir o preconceito. Homossexual assumido e militante, ele diz que a sua eleição para o cargo é “um momento histórico, que traz consigo alguns preconceitos enraizados dentro do próprio movimento”. Em entrevista ao Correio, Bitencourt ressalta que o gay da favela sofre triplo preconceito: por ser pobre, favelado e homossexual. “Mas isso vai mudar. O ano que vem será um marco na diversidade”, acredita. (UC)

Por que fazer um censo gay nas favelas? Qual o objetivo?

Chegou a hora de olharmos para a diversidade. Começaremos discutindo a orientação sexual dentro da comunidade. Assim como há negros em favelas, há brancos, mulheres e homossexuais. Nossa nação é colorida. Tem verde, amarelo, branco, azul e rosa. Queremos enxergar a realidade do homossexual nas favelas brasileiras. É o primeiro passo para mudanças. Atualmente, estamos levantando dentro da nossa própria entidade quem são os gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e heterossexuais. Não adianta irmos para fora, retratar a realidade dos outros, se ainda não temos um olhar para nós mesmos. Após essa análise, estaremos alargando o nosso horizonte.

Em sua opinião, o gay que vive na favela sofre mais preconceito do que os que moram em bairros nobres?

Acredito que a discriminação não tem classe. Somos uma sociedade machista e homofóbica. Ser gay no Brasil é ser personagem de programas humorísticos ou ser retratado de forma simplista nas novelas. A nossa realidade ainda não avançou. Assumir a homossexualidade é uma opção pessoal. Há os que vivem com sua homossexualidade trancada por medo. Outros que não a encaram por vocação. Ainda somos uma sociedade machista e por isso muitos ainda ficam no armário.

Qual o preconceito mais recorrente contra gays nas favelas?

Acho que o preconceito existe também pelo fato de a pessoa ser da favela, e não por ser gay. A sociedade brasileira não nos reconhece como dignos de vencer na vida. Acredita que somos um monte de barracos, um sobre o outro, sem criatividade nem perspectiva para viver. A homofobia ainda é uma prática que predomina entre os brasileiros, independentemente de onde eles moram.

Qual a diferença entre a vida gay na favela e nos bairros nobres?

Acho que a estratificação da sociedade em classes é muito recorrente. Um gay, pobre e negro sofre mais que um gay, branco e rico. Temos preconceitos de diversas ordens, por orientação, por cor e classe. Você consegue imaginar quanto preconceito deve sofrer uma mulher negra, lésbica e pobre?

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