quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Dossiê “MV Bill em Natal”

Em visita de dois dias à capital potiguar, MV Bill, presidente de honra da CUFA (Central Única das Favelas), cumpriu uma extensa agenda que incluiu show, visita a comunidades carentes, lançamento de livro, lançamento da CUFA RN e muitas entrevistas. Essa foi a quinta vez que o rapper esteve em Natal. Além de cantor influente no seu segmento, MV Bill é reconhecido por sua intensa militância na causa dos direitos humanos e por seu engajamento social.

No domingo (21), Bill começou suas atividades em Natal com uma visita à Favela do Mosquito. A pequena comunidade, que convive com a carência de serviços básicos comum a toda periferia, fica praticamente invisível, ocultada pela linha férrea que cruza o rio Potengi. Os mais desatentos simplesmente não percebem que ali, espremidas entre os trilhos e o mangue, vivem centenas de pessoas que lutam diariamente para sobreviver a condições precárias de moradia, violência e tráfico de drogas.

Acompanhado pelo presidente da Fundação José Augusto (FJA), Crispiniano Neto, Bill foi recepcionado por um grupo entusiasmado de crianças, jovens, homens e mulheres que participavam do Natal do Mosquito, uma ação que contou com a apresentação de grupos locais de rap, organizada pelo pessoal do projeto “Mosquito em Ação”.

Após assistir algumas apresentações, Bill deixou sua mensagem para o público que se aglomerava, entre incrédulo e admirado, para vê-lo e ouvi-lo. Ele disse que estava “muito feliz” por poder conhecer aquela comunidade de perto e ver como, “com criatividade e arte”, os seus moradores superavam as dificuldades de viver numa favela. No final, ele fez rima com o nome da comunidade: “Para o bicho não ficar esquisito, viva a Favela do Mosquito”.

Em sua fala, o presidente da FJA disse que aquela visita à comunidade do Mosquito tinha um significado simbólico. “A política cultural sempre esteve longe do povo, principalmente do povo da periferia. Nessa noite, com essa visita, estamos dando um passo importante para mudar isso, aproximando a política cultural do governo daqueles que sempre foram ignorados e nunca tiveram a sua arte reconhecida. Não queremos interiorizar a cultura, porque a periferia não precisa que alguém venha aqui e lhe ensine a fazer cultura. Queremos estimular o desenvolvimento da cultura própria dessa comunidade e dar visibilidade a ela”, declarou. Crispiniano assegurou que a FJA e a CUFA serão “grandes parceiras de agora em diante na elaboração e execução de projetos culturais na periferia”.

Bill ainda conheceu a casa de Nego, idealizador do “Mosquito em Ação”. Nego transformou a própria casa em sede do projeto. Num espaço improvisado nos fundos do local, crianças, adolescentes e jovens têm aulas de teatro, capoeira e graffiti. “Nego é um desses muitos heróis anônimos que existem nas periferias do Brasil, que fazem o que podem para mudar a realidade das comunidades onde vivem”, comentou o rapper carioca.

Da Favela do Mosquito, Bill seguiu para a Praça Cívica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde realizou um show para quase 10 mil pessoas. O show, previsto para durar apenas uma hora, acabou durando quase duas horas, tamanha era a energia e animação do público. Na apresentação, o artista inovou ao misturar o rap com os acordes do sax e do violino. O público demonstrou que a novidade foi muito bem aceita.

No palco, Bill ainda recebeu da governadora Wilma de Faria o “Prêmio Hangar” como melhor artista de rap nacional. O prêmio está em sua oitava edição e é realizado pelo produtor cultural e membro da CUFA RN Marcelo Veni. Bill agradeceu e disse que o prêmio, apesar de deixá-lo feliz, não o envaidecia. “Isso é um incentivo para continuar batalhando por mais espaço para a nossa música, que ainda é muito discriminada. Divido esse prêmio com todos vocês”, discursou emocionado.

Bill lança “Falcão – Mulheres e o Tráfico” na Escola Penitenciária

Bill iniciou a segunda-feira (22) conversando com os atletas do Basquete de Rua de Natal, na quadra de esportes do Parque dos Coqueiros (Zona Norte). Nessa quadra, completamente abandonada pelo poder público, os atletas da região costumam disputar “peladas” de basquete todas as sextas, sábados e domingos. Cansados de esperar que a prefeitura faça a recuperação e manutenção do local, os próprios jovens do bairro arregaçaram as mangas e fizeram a limpeza e algumas melhorias na quadra.

Bill assistiu uma exibição de basquete com os atletas mais habilidosos e, em seguida, bateu um papo com eles sobre esporte e a importância da mobilização deles como forma de pressionar os governantes para as necessidades da comunidade – nesse caso específico, para a necessidade de recuperação da única quadra esportiva do bairro.

“Não dá pra acreditar que um espaço que deveria ser usado para o lazer dos jovens esteja nessa situação, faltando até iluminação. A escuridão só atrai coisa ruim. Vocês não podem esperar que alguém faça alguma coisa por vocês. São vocês que têm que se mobilizar”, enfatizou Bill.

Após a ida ao Parque dos Coqueiros, o resto da manhã foi dedicada a uma verdadeira maratona de entrevistas para emissoras de televisão e rádio locais.

No início da tarde, Bill conheceu mais uma comunidade de Natal, desta vez a Favela da África, no bairro da Redinha, também na Zona Norte. Lá, funciona um projeto de oficinas de rap e break para jovens e adolescentes. Graças a esse projeto, a comunidade se transformou num grande pólo da cultura hip hop. A comunidade, que antes era notícia apenas pela miséria e violência, passou a ser conhecida também pela arte e criatividade principalmente dos jovens.

Mais tarde, às 16h, MV Bill lançou o livro “Falcão – Mulheres e o Tráfico” na Escola Penitenciária Desembargador Ítalo Pinheiro, no mesmo bairro da Redinha. O evento, que contou com a participação de cerca de 30 detentas do Complexo Penal Feminino João Chaves, contou com a presença do secretário de Justiça e Cidadania do Estado, Leonardo Arruda, da ouvidora do Cidadão e do Sistema Penitenciário, Guiomar Veras de Oliveira, do coordenador de Direitos Humanos e Minorias do RN, Marcos Dionísio Medeiros, da coordenadora de Promoção de Políticas de Igualdade Racial do Estado, Elizabeth Lima da Silva, da coordenadora de Políticas Públicas para Mulheres, Amélia Freire e da coordenadora da Kilombo – Organização Negra do RN, Giselma da Rocha.

O secretário Leonardo Arruda disse que o lançamento de um livro com temática focada no universo das mulheres presidiárias servia de motivo para iniciar o debate de um “novo modelo penitenciário”. “A CUFA pode colaborar nesse debate para implantação de um novo modelo de reintegração das mulheres presidiárias. A pessoa perde a liberdade, mas não perde a dignidade”, declarou.

Marcos Dionísio afirmou que o trabalho realizado por Bill e pela CUFA é a prova de que “as pessoas que pensam cidadania e direitos humanos começam a se encontrar não somente para reclamar, mas também para fazer efetivamente as mudanças acontecerem”.

“Precisamos aproveitar essa inquietação e juntarmos isso com a cultura para construirmos um mundo melhor”, ressaltou.

A ouvidora Guiomar Veras disse da sua satisfação com a presença de MV Bill na Escola Penitenciária e frisou que o evento se revestia de um significado especial por permitir “ouvir a voz das nossas Marias”, referindo-se às mulheres apenadas de Natal.

Giselma Rocha enfatizou que a maioria das mulheres presidiárias é negra. “A sociedade nos coloca num ‘local’, atribuindo-nos uma identidade e um papel. Assim, ficamos mais suscetíveis à violência e mais expostas à criminalidade. Queremos conquistar outros espaços”, disse ela, sendo intensamente aplaudida.

Amélia Freire chamou atenção para o fato de muitas mulheres que estão nos presídios nunca terem ido a julgamento e nem terem assistência jurídica. “A partir desse evento, precisamos passar para desdobramentos práticos. O primeiro deles é fazer a identificação da situação de cada presidiária”.

Em sua fala, Bill disse que o lançamento do livro era somente um pretexto para discutir as razões que levam à criminalidade feminina. Ele contou que está preparando uma carta com 20 itens para entregar ao presidente Lula e ao ministro da Justiça, Tarso Genro, contendo as reivindicações e demandas das mulheres presas do Brasil.

Como exemplo dessas demandas, Bill defendeu o direito o direito de voto para os presidiários em geral. “Tudo que se faz no Brasil é com interesse eleitoreiro. Como preso não vota, ele é tratado como subumano”.

O escritor citou ainda a necessidade de se criar alternativas de emprego e renda para as mulheres presas, para que quando elas terminem o cumprimento da pena consigam se reintegrar à sociedade sem o risco de voltar para o crime. “Existe um sistema que empurra as pessoas para a criminalidade. Precisamos romper com esse sistema”, alertou.

MV Bill contou um pouco da sua história, da “infância padrão” e da condição de “jovem negro da periferia que estuda até certo ponto, depois tem que conciliar estudo com trabalho, até ter que optar pelo trabalho”. Bill disse que o hip hop amplificou a sua voz e revelou que após o clipe da música “Soldado do Morro” passou a perceber a dimensão real do problema do tráfico de drogas.

“Cheguei à conclusão que era preciso ouvir os bandidos, não no sentido de glamourizar, para entendermos que o problema está na causa, não na conseqüência. O verdadeiro ataque que precisamos fazer é na área social, principalmente na educação, que é um artigo de luxo hoje em dia”, afirmou.

Bill disse que “é impossível falar de criminalidade sem falar das mulheres”. Segundo ele, “muitas mulheres, quando se envolvem com o crime, sofrem quatro vezes mais que os homens”. Ainda segundo ele, “a maioria das mulheres entra no tráfico por amor aos seus companheiros”.

A advogada Marilda Barbosa de Almeida, que também participou do debate, disse que “ninguém se preocupa em saber o que aconteceu com os filhos das mulheres que são presas”. “As políticas públicas para essa área devem versar sobre família”, defendeu.

No final, o espaço ficou aberto para as detentas participarem fazendo perguntas. Ana Paula, presa a oito anos pelo crime de latrocínio (roubo seguido de morte), perguntou a Bill se ele acreditava que quando ela saísse do presídio teria chances de recomeçar a vida.

Bill respondeu com franqueza: “Olha, não posso mentir pra você. A realidade que te espera lá fora é muito difícil e o preconceito é muito grande. Você precisa ter muita força de vontade para não voltar ao crime e vir parar no presídio de novo”.

Ele terminou sua participação no evento recitando a letra de um novo rap que fará parte do seu próximo cd e que trata da realidade das mulheres envolvidas com o crime.

Transforme-se

Antes do lançamento do livro, Bill conheceu o trabalho das mulheres do projeto “Transforme-se”, uma iniciativa da Secretaria de Justiça e Cidadania, em parceria com o Instituto FAL, que oferece uma oportunidade de ressocialização, através da arte, para as presidiárias. Elas são capacitadas em oficinas de artesanato, fabricam e vendem seus produtos em feiras e eventos.

Lançamento da CUFA RN

O último compromisso de MV Bill em Natal foi o lançamento oficial da CUFA RN. O evento aconteceu à noite, na Praça André de Albuquerque, mais conhecida como Praça Vermelha, um ponto tradicional de encontro da cultura alternativa de Natal. O evento reuniu todas as tribos da cultura urbana: DJs, grupos de rap, break, grafiteiros, skatistas e atletas de basquete de rua.
Bill falou sobre a CUFA para centenas de jovens e adolescentes que estavam no local e conclamou a todos para se engajarem e não deixarem a alegria e energia que estavam demonstrando naquela noite esfriar.

“Vou embora com grandes expectativas sobre a CUFA RN. Espero voltar muito breve aqui e ver esse trabalho frutificando, com resultados reais”, finalizou.

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